Sobre perdas e lutos
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“Não!” costuma ser a nossa reação mais instantânea frente à notícia de uma perda, reação que logo é substituída pelo desespero e pela dor infinita que é perder alguém que amamos, que sabemos
insubstituível. Nesses momentos, somos confrontados com a realidade implacável de que alguém, que ontem estava aqui, talvez já não esteja amanhã. Assim, o mundo que conhecíamos pode se
transformar em um lugar ameaçador, que já não assegura a continuidade da vida daqueles que são importantes para nós. Um mundo que, por não oferecer garantias, torna-se um lugar hostil para
vivermos, colocando em cena a fragilidade da nossa existência. Por se tratar de uma realidade muito dura de ser experimentada, contudo, buscamos resistir a ela. E fazemos isso buscando por
culpados. Às vezes, atribuímos a culpa aos pais, por não terem cuidado direito; aos amigos, que não perceberam; ao governo, que não fez seu trabalho; a Deus, que foi egoísta; ao
profissional, que errou; a nós mesmos, que não amamos o suficiente. Se existe uma culpa para atribuir, então a morte talvez fique mais fácil de ser aceita, na medida em que nos iludimos com
a ideia de que ela poderia ter sido evitada. Racionalmente, sabemos que um dia todos perderemos uma pessoa amada. Nosso movimento de tentar negar a fatalidade da morte quando ela acontece,
entretanto, evidencia que, emocionalmente, não existe ninguém preparado para a perda. O que nos faz questionar: por que é tão difícil perder alguém? Quando perdemos uma pessoa querida,
perdemos o mundo como o conhecíamos, pois perdemos parte do lugar que ocupávamos nele: o papel de mãe daquela pessoa, de pai, de irmão, de amante, de amigo. Perdemos a relação que tínhamos
com nós mesmos e que era possível porque aquela pessoa existia e nos amava. Ao perder outro, perdemos parte da nossa autoestima, da nossa identidade, perdemos projetos e perdemos a ilusão de
imortalidade; passamos a ser confrontados com a nossa finitude e com o valor da nossa existência. Em suma, ao perder alguém, perdemos uma determinada maneira de viver e de estar no mundo
que nos era confortável. É como se parte de nós fosse destruída e, justamente por isso, frente à perda, acionamos um trabalho mental de reconstrução de uma nova forma de existir. Esse
trabalho se trata do luto, aquilo que nos permite sobreviver diante da experiência tão abrupta e dolorosa que é a morte. Lidar com a perda, portanto, é um trabalho de reinvenção de parte de
nós. E justamente aqui talvez resida a verdade mais dolorosa da perda: o fato de que não voltaremos a ser os mesmos que fomos. Há uma ferida que fica. Nos reconstruímos, mas sabendo que algo
ficará faltando. Por isso, parte do nosso trabalho de luto – trabalho de sobrevivência – é permitir que tenhamos perdido. É permitir que aquele que amamos possa ter partido e nos deixado
sem que isso tenha sido uma falha no amor dele por mim ou meu por ele. Lidar com a perda é, antes de tudo, um exercício de autorização para nos desarraigar da culpa de ter sobrevivido e
poder apostar na vida, mesmo que ela seja trágica, isto é, mesmo conhecendo o fato de que ser bom, amar e ser amado não nos protege de que algo ruim nos aconteça. Esse movimento de
autorização, porém, não é simples, leva tempo e sua dor pode ser devastadora. Nossos projetos, ocupações e nossas relações ficam temporariamente em suspensão, porque nada mais parece nos
causar interesse no mundo, que perde o seu colorido. Autorizar-se a se transformar, a trabalhar o luto, passa pelo exercício exaustivo de revisitar as memórias relacionadas àquele que
perdemos, dando um novo sentido para elas. Passa pela dor do amor, ou seja, a dor de reavivar os vínculos tão preciosos que se tinha com aquela pessoa quando ela mesma já não está aqui para
corresponder aos nossos afetos. De repente, não é mais a ausência da pessoa que nos perturba, mas sua presença maciça em tudo que vemos, tocamos e cheiramos. Se estamos na rua, lembramos de
quando passamos ali com a pessoa, rumo a um lugar qualquer, tão longe e agora tão significativo. Da janela, o outdoor anuncia a marca dos produtos que a pessoa gostava de consumir e, dentro
do armário, a caneca, antes sem importância, ganha outro valor, porque era sempre a escolhida da pessoa que partiu. Dessa forma, desligar-se do luto se torna difícil e até abrir a geladeira
vira uma fonte de sofrimento. Dói amar. O que fazer, então, quando perdemos alguém? A verdade é que não há receita ou formas prontas para se lidar com o luto. Para alguns, é tempo de um
trabalho mental que exige repouso. O luto não deixa de ser sentido pelo corpo e, para algumas pessoas, é como se toda a sua energia corporal fosse drenada e dirigida para a mente, que mesmo
à revelia do corpo exausto continua trabalhando madrugada à dentro na elaboração da perda. O luto pode ignorar o sono, a fome e mesmo provocar dor física. Para outras pessoas, ao invés do
descanso, a exaustão física é buscada, sendo que a movimentação do corpo ajuda a dar vazão ao excesso de conteúdos que embaralham a mente de uma vez só. Para algumas pessoas, o luto é tempo
de reencontro com o divino – com a promessa reconfortante da continuidade da existência de quem amamos. Para outras, tempo necessário de distanciamento do religioso, um movimento para que a
culpa que dói tanto possa ser dirigida a um destino impessoal, para que a raiva, o ressentimento e tudo aquilo que repudiamos em nós mesmos possa ser experimentado de um outro lugar. Cada
pessoa tem sua forma singular de enfrentar a perda, sendo que universal parece, apenas, a necessidade de tempo para que isso possa ser feito. O luto não é instantâneo e não por acaso nos
referimos ao processo como sendo um trabalho: o trabalho de luto. Todo trabalho exige um tempo, e com o luto não é diferente. Não raro, aliás, as atividades cotidianas passam a demorar mais
e ter a execução mais difícil, seja porque perdemos temporariamente o interesse pelas nossas ocupações, seja porque é impossível se concentrar nelas. A perda bagunça nossas vidas e o luto,
em sua realização, coloca o tempo em perspectiva: ora acelerado, ora em suspensão. Se a saudade infinita faz parecer que a perda aconteceu há muito tempo, a dor igualmente incalculável faz
parecer que a perda aconteceu ainda ontem. O trabalho de luto, apesar de fundamental, não é uma experiência fácil – muito facilmente, pode ser a experiência mais difícil pela qual se passa
ao longo da vida. Por isso, existem os rituais relacionados à perda, como seriam os velórios, que nos ajudariam não apenas no enfrentamento da dor, mas também no sentido de conferir um
direcionamento sobre como agir em relação a ela, sobre como agir em um momento no qual sequer sabemos o que falar. Hoje, não só os rituais estão enxugados como, em decorrência das atuais
circunstâncias, impedidos. Ficamos, assim, mais do que nunca, desorientados. O que se torna ainda mais doloroso em uma sociedade que exalta a felicidade a qualquer custo e busca patologizar
a tristeza, reduzindo a dor pela perda de quem amamos ao estatuto de um transtorno mental. O luto não é uma doença, mas uma experiência absolutamente humana, necessitando de espaço no laço
social para que possa ser escutado e acolhido. Ninguém lida com uma experiência tão avassaladora sozinho. Tempos de luto são tempos de buscar aqueles que nos são caros: a família, se for
possível contar com ela; amigos dispostos a nos ouvir; pessoas que já passaram pela mesma experiência e sobreviveram a ela; grupos de apoio emocional. Se for necessário, um profissional
qualificado pode ser de grande valia nesse momento. Fale, chore, grite. E fale novamente e chore novamente se as lágrimas vierem aos olhos. Não há vergonha nisso. Permita-se descobrir o que
lhe ajuda, o que faz bem para você nesta hora; cada um tem seu modo próprio de seguir caminhando para se juntar àqueles que sobreviveram às perdas. Mas, e no caso em que estou apenas
acompanhando alguém que sofreu uma perda significativa? Então é o momento de estar com essa pessoa. Oferecer a sua escuta sem julgamentos, se ela quiser falar, e respeitar o silêncio dela,
se esse ainda não for o seu tempo de dizer. Evite as frases feitas, como “foi melhor assim”, elas não são de nenhum valor e tendem a desvalorizar a dor que a pessoa está sentindo. Se a
pessoa estiver disposta a isso, um abraço pode ser de maior significado. Às vezes, realizar uma atividade doméstica simples pode ser a necessidade da pessoa naquele momento. Pergunte.
Disponha-se. Tenha paciência se a pessoa estiver irritada. Isso faz parte do modo como algumas pessoas vivem o seu estado de fragilidade. A verdade é que ainda não sabemos a magnitude das
perdas que estão acontecendo. É possível que muitos lutos, em decorrência da urgência em resistir à pandemia, estejam sendo adiados, não podendo ser vividos agora. A diminuição do tempo dos
rituais contribui para que a perda em si seja ainda mais difícil de assimilar, e o distanciamento social, absolutamente necessário, não deixa de tornar ainda mais solitária uma experiência
que por si só é de solidão. Nesse contexto, fortalecer vínculos é a melhor estratégia de enfrentamento que temos para lidar com um sofrimento que tomou proporções coletivas e, mais do que
isso, mundiais. * _AMANDA ARMSTRONG LEMES é mestranda em psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e colaboradora do projeto de extensão Luto e Prevenção do Suicídio._
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